TERRORISMO - 11 DE SETEMBRO | Como os EUA e os jihadistas mudaram em duas décadas

Trabalhos dos bombeiros nos escombros das torres gémeas dois dias depois dos atentados. 📷 ©EPA/BETH A. KEISER

Depois de excessos e erros, a superpotência desmilitariza combate ao terrorismo. Al-Qaeda foi mimetizada e táticas adaptadas, com grupos a agir por procuração.

Naquela terça-feira do '11 de setembro', como era costume, o senador Joe Biden estava no comboio a caminho de Washington. Durante o trajeto dois aviões se chocaram contra as Torres Gêmeas, em Nova Iorque. Uma vez chegado à capital, viu a fumaça por trás do Capitólio resultante do choque do terceiro avião no edifício do Pentágono. Quando chegou ao Capitólio, conta no livro Promises to Keep, tentou entrar, mas a polícia não deixou. O senador queria transmitir uma imagem de normalidade quando o presidente estava no ar, no avião presidencial, o vice-presidente Dick Cheney e os líderes do Congresso estavam abrigados, e nas ruas os boatos já davam George W. Bush morto e diziam que uma bomba radioativa tinha explodido.

O democrata acabou por fazê-lo quando, minutos depois, foi interpelado pela reportagem da ABC News: instou o presidente a regressar o quanto antes a Washington, apelou para a calma dos norte-americanos e disse logo que os responsáveis iriam ser apanhados. "O terrorismo vence quando, de fato, afeta as nossas liberdades civis ou fechar as nossas instituições. Temos de demonstrar que nenhuma destas coisas aconteceu." Minutos depois, conta a CNN, Bush telefonou para Joe Biden para agradecer o discurso de unidade e de serenidade.

Se então como agora Joe Biden mostrou não recuar perante a adversidade, o presidente defendeu há dias a saída do Afeganistão com um balanço crítico. "Ao virarmos a página da política externa que tem guiado a nossa nação nas últimas duas décadas, temos de aprender com os nossos erros."

Um dos erros para o qual quase todos apontam foi a invasão do Iraque, em 2003. Como o livro de Bob Woodward Plan of Attack pormenoriza, desde muito cedo que a administração Bush quis acabar o trabalho do pai Bush e acabar com Saddam Hussein. Muitos bem pensantes não se opuseram. Henry Kissinger, por exemplo, disse que "o Afeganistão não chegava" e que, tal como os Estados Unidos foram humilhados, era "necessário humilhá-los", esquecendo-se o diplomata de estabelecer uma ligação entre o ditador iraquiano e o terrorismo da Al-Qaeda.

Terão os Estados Unidos aprendido com os erros, perguntam jornalistas e peritos ao espelho? "Com a saída calamitosa do Afeganistão e as prioridades americanas pouco claras no futuro, não parece que Washington tenha aprendido com os erros das duas últimas décadas. Em vez disso, o poder e a fraqueza militares dos EUA na execução de uma doutrina estratégica de política externa parecem ser constantes. Finalmente, o perigo dos grupos extremistas permanece, e embora a liderança desses grupos tenha mudado, a sua doutrina não", sentencia a colunista da Foreign Policy Mina al-Oraibi.

Fim da lua-de-mel

"O 11 de setembro teve um impacto dramático e trágico no imediato, desde logo pela escala do ataque, pela mortalidade que provocou e pela ideia de que poderia ainda ter sido muito pior, se grande parte das pessoas não tivessem sido retiradas. E teve um efeito imediato, acordar os americanos para uma certa ilusão de pós-guerra fria", diz Bruno Cardoso Reis, vice-diretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. "Falava-se muito do dividendo da paz e do fim da História, que a única grande potência era benevolente e bem acolhida pelo resto do mundo. E no fundo o modelo ocidental de economia de mercado e democracia liberal era um modelo aceite por todos. Claramente, não era o caso e também não é verdade que se tivesse entrado num período de pacificação generalizada das relações internacionais", prossegue.

Memorial do 11 de Setembro em Weehawken, Nova Jérsia, com vista para Nova Iorque. 📷 ©EPA/WILL OLIVER

"Aquilo que se passa na década de 90 é o que tendo a chamar-lhe a lua-de-mel do pós-guerra fria, em que não só há esta ideia do multilateralismo e da dimensão de cooperação internacional, etc., mas também uma afirmação ímpar, sem competição, dos Estados Unidos", comenta a investigadora do IPRI Ana Santos Pinto. "Quando acontece o 11 de Setembro, os EUA são o grande poder internacional sem rival estratégico na altura. Sendo certo que hoje os EUA continuam sem rival do ponto de vista militar, têm rivalidade estratégica, no caso da China, e desafio, no caso da Rússia", diz.

"Expressão da vulnerabilidade dos Estados Unidos", comenta a professora da Universidade Nova, o 11 de Setembro "gera uma mudança do ponto de vista interno, na organização, e na política externa, primeiro no Afeganistão, depois no Iraque, e naquela designação de que já nos esquecemos de alguma forma, que é a guerra contra o terror". Essa expressão, continua, "é contra algo que é um sentimento; uma coisa é a guerra contra o terror, outra é a guerra contra o terrorismo, são duas questões diferentes, sendo que a guerra enquanto instrumento tradicional de política, é a guerra contra uma entidade material, e nem o terror nem o terrorismo são entidades materiais".

Cardoso Reis diz ver "alguma verdade" na declaração de guerra de Bush "ao terrorismo e a uma tática violenta, não era apenas a um grupo ou conjunto de grupos terroristas hostis aos Estados Unidos". "Há uma reação extrema que resulta do enorme susto e do enorme trauma que os EUA sofreram, há uma demonstração de poder e de força para compensar essa demonstração pública de fraqueza."

Essa força projetou-se mais tarde em "reações muito mais questionáveis e criticadas na altura, como por exemplo a invasão do Iraque", embora destaque "a ideia de uma militarização do combate ao terrorismo", a qual foi corrigida anos depois enquanto se registrou um reforço noutras dimensões. "Por exemplo, a dimensão policial do combate ao terrorismo, a criação de um departamento de segurança interna, que não existia nos EUA ao contrário da maior parte dos países europeus, um esforço muito grande para quebrar as barreiras entre segurança interna e segurança externa, entre a CIA e o FBI, que se percebeu que não tinham colaborado de todo no combate à Al-Qaeda. E também as mudanças no transporte aéreo, nos boletins dos passageiros", listou.

"Com o 11 de Setembro passamos a olhar por cima do ombro em áreas geográficas onde isso tradicionalmente não acontecia a não ser por lutas políticas internas, como foi o terrorismo no continente europeu", diz Santos Pinto. "Os instrumentos de combate ao terrorismo, o contraterrorismo, alteram-se. Entramos pelo desenvolvimento tecnológico na utilização de um conjunto de instrumentos, como os dados biométricos, a vigilância eletrônica, os recursos da inteligência artificial, o controle de fluxos, etc.", algo a que a docente da Universidade Nova se mostra preocupada, tendo em conta os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e "a forma como estes se articulam nas democracias liberais".

O autor do livro português Pode Portugal ter uma Estratégia? nota que, "eventualmente com alguns erros e alguns exageros", a resposta "foi bastante eficaz a eliminar um ataque com a mesma escala". Por outro lado, "não foi eficaz a eliminar completamente o terrorismo e, no fundo, levou a intervenções militares muito prolongadas e com objetivos muito ambiciosos, de reconstrução dos países e de construção de democracias no Médio Oriente".

Replicar e adaptar o terror

Ana Santos Pinto e Bruno Cardoso Reis coincidem ao referirem que a rede de Bin Laden foi objeto de replicação, mas que apesar dos objetivos serem os de sempre, muito mudou. "O 11 de Setembro torna visível a relação em rede de células, que é reproduzida por outros grupos à escala global. Isso altera o conceito de terrorismo até à data", diz a investigadora. "Essa reprodução resulta também de divisões internas da Al-Qaeda e de onde sai o braço do autoproclamado Estado Islâmico, que tem uma ligação geográfica muito específica, mas se olharmos para os continentes asiático e africano há essa reprodução."

O Estado Islâmico tirou proveito das tecnologias para fazer passar propaganda e radicalizar pessoas um pouco por todo o mundo. 📷 ©Artur Machado / Global Imagens

"Houve um esforço de outros grupos para replicar o modelo da Al-Qaeda: ataques coordenados em grande escala, construção de santuários, controle de território para permitir ganhar outra escala, outra ambição. Pelo menos essa ambição tem falhado, não por acaso, mas devido a intervenções militares contra o Daesh na Síria e no Iraque, e contra grupos jihadistas em parte afiliados na Al-Qaeda, em parte não, no Sahel", aponta o professor.

Sendo certo que, como nota Ana Santos Pinto, o "princípio base é sempre o mesmo" destes grupos, isto é, a "tomada de poder político com consequências na alteração da organização da sociedade, muito para além do que é a dimensão religiosa", a forma como atuam já não é a mesma, tendo em conta a resposta dos estados.

"Estes grupos adaptaram-se. O grande objetivo continua a ser ataques surpresa contra alvos fáceis e vulneráveis, por regra alvos civis, sempre que possível alvos ocidentais mas cada vez mais admitir causar mortes entre muçulmanos que não são adeptos das correntes mais fanáticas, que são a maioria dos muçulmanos", diz Cardoso Reis. "E ataques doutro tipo, utilizando meios mais improvisados, utilizando veículos contra pessoas, não utilizando armas de fogo mas facas ou outros instrumentos cortantes que são impossíveis de eliminar da vida quotidiana. E utilizando os mecanismos da propaganda que a internet permite, e as redes convertidas, ou para utilizar para fazer ataques ou sobretudo para mobilizar apoiantes em qualquer parte do mundo sem haver necessariamente um treino ou uma relação de comando direto com indivíduos que se radicalizam online ou em comunidades pequenas."

O terrorismo é, hoje como antes, uma ameaça? "Continua a ser porque as razões estruturais continuam a existir: regimes autoritários, desigualdades, necessidades das populações e fragilidades dos estados. Há uma diferença muito significativa em relação há 20 anos, que é o conhecimento que temos sobre estes movimentos terroristas e as estratégias de radicalização nas comunidades", afirma Ana Santos Pinto.

Cardoso Reis aponta também para uma tendência crescente, a dos conflitos por poderes usando grupos armados como "andarilhos, o que os torna mais perigosos". Dá o exemplo do Paquistão, que apoiou os talibãs, ou do Irão, por trás de vários grupos no Médio Oriente. "No fundo, é possível minar os interesses de um adversário por vezes muito mais forte, como os Estados Unidos, sem provocar um confronto direto."

Escrito por Cesar Avó/DN
Postagem Anterior Próxima Postagem