Não há nenhum indício de que Jean tenha participado dos atos de vandalismo. Sua condição de saúde mental não foi suficiente para que a prisão fosse relaxada. | 📷 Marcelo Camargo/Agência Brasil
Na fase da pré-adolescência, Jean de Brito Silva fez cinco anos de psicoterapia a pedido da escola onde estudava em Juara (MT), a 730 quilômetros da capital, Cuiabá. Ele tinha claras dificuldades com atividades cognitivas, a ponto de estudar até o ensino médio e ainda hoje, aos 27 anos, ser analfabeto funcional. Os tratamentos não tiveram continuidade, assim como as passagens para encaminhamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs).
Calado, arredio à interação com outras pessoas, Jean não frequentava as sessões como recomendado. Ainda assim, em agosto de 2022, o médico perito José Carlos Braga Netto conseguiu estabelecer um diagnóstico, a pedido da família, que tenta conseguir aposentadoria por invalidez a Jean.
O especialista escreveu: “Atesto para fins judiciais que o paciente acima nominado é portador de deficiência intelectual moderada e transtorno do espectro autista, sendo enfermidades adquiridas no início da infância e/ou congênitas, estáveis, ou seja, sem perspectiva de melhora, que, pode desenvolvimento mental incompleto, o tornou incapaz de prover sua subsistência ou autodeterminar-se em sociedade, necessita de auxílio de pessoa capaz para as atividades instrumentais da vida diária”.
A família, que chegou a morar em um barraco de lona no lixão da cidade, trabalha coletando lixo para reciclagem. Os pais, José Gomes Rosa da Silva e Edina Seroni de Brito da Silva, que mais recentemente conseguiram comprar uma pequena chácara e construir uma casa onde moram com os cinco filhos (que têm de 27 a 20 anos), ainda não conseguiram para ele a aposentadoria por invalidez, dificultada após a prisão de Jean no 8 de janeiro.
Jean costumava ficar isolado. Tinha também o hábito de sair de casa sem aviso prévio. Foi o que fez em dezembro de 2022, poucas semanas depois de ter tentado cometer suicídio. Entrou em um ônibus em direção a Brasília (DF) para participar das manifestações do dia 8. “Fui para Brasília lutar pelos meus direitos”, diz.
Tornozeleira eletrônica
“Ele tem uma ilusão, acha que é bombeiro, chegou a fazer um curso de socorrista. No meio da confusão, durante a dispersão dos protestos, ele tentou ajudar um grupo de senhoras. Não chegou a entrar em nenhum dos edifícios”, argumenta a advogada de defesa, Silvia Giraldelli. “Ele chegou no meio do tumulto e estava indo embora quando foi detido próximo da rampa do Palácio do Planalto.” Ele confirma: “Não entrei em lugar nenhum. Estava no gramado, fui preso, ninguém me explicou nada”.
O catador de materiais reciclados de 27 anos ficou então seis meses preso, até meados de julho. Sua condição de saúde mental não foi suficiente para que a prisão fosse relaxada. Jean tem dificuldade em fazer a própria higiene pessoal, não sabe diferenciar notas de dinheiro, não consegue estabelecer uma comunicação fluida. “O banheiro era na cela. A comida, não vou mentir, não era boa”, ele relata.
Foi solto, finalmente, a mando do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, mas ainda precisa manter nos pés uma tornozeleira eletrônica – que causa desconforto. “Voltei a trabalhar com meu pai na reciclagem. Agora estou bem, minha família ficou muito feliz em me ver”, ele conta. “Minha saúde melhorou, na prisão eu tinha muita tosse. Mas a tornozeleira incomoda”.
Ao longo de seus esforços para que Jean deixasse a cela e respondesse em liberdade, a defesa chegou a pedir um laudo psiquiátrico, elaborado pelos peritos Hewdy Lobo Ribeiro e Elise Karam Trindade, que confirmou as constatações de Braga Netto.
“No dia antes da viagem para Brasília, ele não relatou para familiares e nem fez algo diferente em sua rotina, mas simplesmente soube que algumas pessoas iriam e foi também, sem avisar previamente aos parentes, relatando somente quando chegou no destino”, relata o laudo, elaborado com base em relatos da família.
Produzido ainda enquanto ele estava detido, o documento também aponta que o caso de Jean demanda cuidados que se incluem na lei de 2012 que define a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
“O senhor Jean enquadra-se na aplicação desta lei, pelos relatos dos familiares e por documentos médicos inclusos neste trabalho, de forma que é deficiente com necessidade de atenção integral à saúde por tratamento multiprofissional, por ter diagnósticos que apresentam muitas necessidades de assistências de saúde”. O laudo lembra ainda que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu, por intermédio da resolução 487, a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, que prevê uma atenção especial para casos de acusados judicialmente e que são portadores de transtornos.
Cinco acusações
Jean continua respondendo a uma série de acusações: fazer associação para cometer crime (com possível pena de reclusão de 1 a 3 anos); negociar com governo ou grupo estrangeiro com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o país (reclusão de 3 a 8 anos); tentar depor o governo legitimamente constituído (reclusão de 4 a 12 anos); destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia (reclusão de um a seis meses ou multa); dano qualificado (reclusão de seis meses a três anos e multa).
“Enquanto ele esteve preso, todas as respostas em relação aos pedidos de soltura eram feitas de forma genérica. Acreditamos que não se analisava as provas, as situações, os documentos anexados. Não havia uma análise específica para o caso do Jean. Ele só ganhou atenção quando fomos para a imprensa”, explica Giraldelli. “Agora está se adaptando à nova rotina. Mas apresenta traços de trauma por ter ficado detido, sofreu uma série de dificuldades dentro do cárcere”.
Procurados, o STF e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não se manifestaram.
Por Tiago Cordeiro/GP