As mudanças do novo Código Civil podem dar direitos para amantes, segundo o último relatório para a elaboração do anteprojeto. Uma das emendas apresentadas quer acrescentar explicitamente que amantes tenham direito à moradia, alimentos e benefícios previdenciários. Se aprovada, a sugestão ainda pode facilitar o reconhecimento de uniões estáveis de relações incestuosas. A Comissão de Juristas, instalada a pedido do presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), deve apresentar o texto final da proposta de anteprojeto em abril.
O Código Civil vigente considera que “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato” (art. 1.727). O relatório do anteprojeto quer alterar o trecho grifado para “não constituem união estável” (art. 1.564-D).
O art. 1564-D é, erroneamente, enumerado duas vezes no relatório final apresentado pela Comissão de Juristas. Na segunda parte de um dos dispositivos com esse número, consta que “se, no convívio, restarem indubitavelmente comprovados os fatos que poderiam ter por efeito o reconhecimento de união estável, não fosse um dos parceiros impedido para o casamento, poderá o juiz proceder à partilha dos bens adquiridos nesse período, observado o esforço comum empreendido para sua aquisição”.
Regina Beatriz Tavares, doutora em Direito Civil pela USP e presidente da Associação de Direito de Família e de Sucessões (ADFAS), acredita que o texto necessita ser melhor redigido para ficar evidente que a obtenção de direitos por amantes não está sendo considerada. “A proposta tem que deixar claro que é para evitar o enriquecimento indevido. Também precisa ser expresso que o esforço deve ser com entrega de capital, ou seja, dinheiro, ou efetivo trabalho não remunerado na atividade profissional da outra pessoa”, considera.
Ainda de acordo com Regina Beatriz, a jurisprudência atual já reconhece que o enriquecimento indevido ou ilícito é proibido. Está previsto o cálculo da contribuição efetivada ao patrimônio de outra pessoa, e quanto pode ser requerido. Por isso, a Comissão de Juristas precisaria apresentar um texto de forma que ficasse explícito que está dentro do entendimento atual. A falta de clareza aumenta as chances de retomar a discussão sobre amantes terem direitos sobre a pessoa que mantém a relação paralela, questão já discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Nesta tese do STF, está escrito que ‘inclusive para fins previdenciários’ a preexistência de casamento ou união estável impede o reconhecimento de novo vínculo. Esse ‘inclusive’ é muito importante, porque mostra que também cabe a outros ramos do direito”, analisa Regina Beatriz.
Emenda quer gerar benefícios a amantes também em relações durante o casamento
O texto que pode dar abertura a uma nova discussão sobre benefícios a amantes pode ficar ainda pior se a proposta de uma emenda para o artigo 1.517-D for aprovada. A sugestão quer deixar claro no Código Civil que as relações entre “pessoas impedidas de casar” e que sejam semelhantes à união estável devem gerar direitos e obrigações, incluindo benefícios previdenciários e partilha de bens acumulados durante o período da relação.
A emenda justifica que “está na hora de acabar com este protecionismo aos homens que mantêm uniões paralelas”. Ainda segundo a justificativa, a família concomitante fica prejudicada quando comparada à família formada por um casamento com a legislação atual.
“Isso é um argumento pífio, enganoso. Uma relação paralela a um casamento ou a uma união estável é uma relação de adultério. É, como disse o STF, uma relação que viola o princípio da monogamia e a regra da fidelidade”, afirma a presidente da ADFAS.
Se aprovado, texto de emenda pode reconhecer uniões incestuosas
O termo “relações entre pessoas impedidas de casar”, sugerido pela emenda, pode flexibilizar o reconhecimento de união instável em relações incestuosas. Isso porque a expressão dialoga com o artigo 1.521 do Código Civil atual. O dispositivo define outras situações que impedem o estabelecimento da união conjugal além das pessoas já casadas, como pais e filhos (seja se parentesco natural ou civil), irmãos, padrastos com enteados, o adotado com o filho adotante, entre outras.
“A emenda tem outro objetivo, pela própria justificativa, que é de dar direito a amantes em uma relação de mancebia. Mas, se formos fazer a leitura sobre quem são as pessoas impedidas de casar e o que é impedimento para casamento, poderia se chegar até nesse absurdo, em termos interpretativos”, diz Regina Beatriz.
“Já é um absurdo adquirir direitos para amantes, mais absurdo ainda é atribuir direitos de família em uma relação incestuosa”, conclui a jurista.
Comissão de Juristas tem como meta seguir entendimentos consolidados no STF
A união estável é considerada uma entidade familiar desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Com o tempo, o entendimento sobre os efeitos da união estável foi se consolidando, e hoje são considerados semelhantes aos do casamento. Em 2021, o Supremo definiu duas importantes teses (529 e 526) sobre o tema, as quais protegem a monogamia como princípio estruturante da unidade familiar, seja através do casamento ou da união estável.
“Inclusive está como meta do presidente da Comissão de Juristas, o ministro Luis Felipe Salomão, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, seguir as teses de repercussão geral do STF. Isso foi declarado diversas vezes”, reitera Regina Beatriz. A jurista explica que se o Legislativo aprovar uma norma que contraria uma tese de repercussão geral já definida pelo Supremo, essa norma deverá ser debatida novamente pela Corte. E, se os ministros se mantiverem fiéis às teses fixadas, será considerada inconstitucional.
No meio jurídico, é sabido que um dos relatores da Comissão de Juristas, Flávio Tartuce, já se mostrou favorável à ideia de que amantes tenham os mesmos direitos que os cônjuges. Em seu livro, “Direito Civil: Família”, Tartuce comenta a decisão da tese 526 definida pelo STF. Ao mencionar o caso que gerou a tese, Tartuce escreve que “certamente, a esposa sabia do relacionamento paralelo, aceitando-o por anos a fio. Sendo assim, deve, do mesmo modo, aceitar a partilha dos direitos com a concubina, que deve ser tratada, no caso em análise, como companheira”.