OPINIÃO - Há cada vez mais diagnóstico de TDAH, autismo e outros transtornos: pais e escolas estão preparados? | Luciana Garbin

Hoje se sabe mais sobre as chamadas crianças atípicas, mas especialistas alertam que é preciso ir além dos laudos e investir na adaptação para que elas aprendam mais e se desenvolvam melhor


Para chegar à conclusão de que o cérebro de uma criança funciona diferentemente do de outras crianças, de maneira atípica, é necessária uma série de avaliações neuropsicológicas com apoio multidisciplinar. | 📷 Ekaterina Pokrovsky/Adobe Stock

Nunca houve tanto diagnóstico de transtorno neurológico infantil. Em apenas um ano, entre 2022 e 2023, cerca de 200 mil crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) foram matriculados em salas de aula comuns no Brasil, um aumento de 50% segundo o Censo de Educação Básica. Nos Estados Unidos, estimativa do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) apontou 1 em cada 36 crianças com autismo - em 2000, o registro era de 1 por 150. No caso do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), o cálculo é de que atinja de 5% a 8% da população mundial.

Mais do que uma questão para as famílias, números como esses refletem um novo desafio nos colégios, que só deve crescer neste ano: o de como lidar com salas de alunos cada vez mais diversas e complexas.

Hoje se sabe muito melhor do que em décadas atrás sobre as chamadas crianças atípicas, portadoras de necessidades especiais ou distúrbios do desenvolvimento que demandam adaptações no ambiente educativo para que aprendam melhor. Mas estão as famílias e os colégios preparados para ir além dos laudos e promover as adaptações necessárias para que elas se desenvolvam melhor?

“Existe a questão da ‘criança com laudo’ de uma maneira positiva e de uma maneira negativa”, observa a neuropsicopedagoga clínica Ingrid Garrido. “Positiva é quando a escola entende: ‘Olha, essa criança tem um laudo, o que é melhor pra ela? Ou quando a família recebe um diagnóstico e pensa: ‘Que terapia é mais apropriada para ela se desenvolver?’ Mas tem também o tipo de percepção negativa quando alguém diz: Ah, fulaninho fez isso? É, mas ele tem laudo, né? Não pode nem reclamar com o pai...”

Há 12 anos lidando com crianças atípicas, Ingrid estima já ter atendido milhares de casos de todos os tipos e idades. E atribui o aumento de diagnósticos nos últimos anos a três fatores principais: o fato de as famílias estarem hoje mais bem informadas sobre o assunto e buscarem mais ajuda especializada; o aumento de pesquisas na área; o crescimento no número de pessoas especializadas em identificar transtornos neurológicos.

Com a pandemia da covid-19, ela afirma também ter notado um olhar mais atento e próximo para os filhos, bem como a explosão do uso de telas por crianças, que pode ter contribuído para atrasos no desenvolvimento de muitas delas. Houve ainda, segundo Ingrid, uma revisão no manual de diagnósticos e a inclusão no espectro do autismo de transtornos antes considerados mais leves. Todo esse cenário fez os números crescerem - e os desafios para tornarem o trabalho mais efetivo se sobressaírem. A seguir alguns deles.

Desafio 1) Nem sempre o laudo traz o diagnóstico correto

Para chegar à conclusão de que o cérebro de uma criança funciona diferentemente do de outras crianças, de maneira atípica, é necessária uma série de avaliações neuropsicológicas com apoio multidisciplinar. Cada transtorno tem características próprias e pode levar a diferentes graus de comprometimento. O problema é que, como às vezes mais de um tipo coexiste e tem desdobramentos parecidos, ele pode ser confundido por profissionais nem sempre especializados, levando a diagnósticos errados e a prejuízos para pacientes e famílias. Além de consequências emocionais, o diagnóstico errado pode atrasar o uso de terapias adequadas e reduzir seu sucesso.

Desafio 2) Nem sempre a família aceita o diagnóstico

A maneira de pais encararem o transtorno dos filhos varia. “Muitas vezes chega uma família aqui e tem pai que nem sobe, diz que a mãe é louca e está vendo pelo em ovo”, conta Ingrid Garrido. “Tem mãe que vem, paga uma nota na avaliação e, quando sai o diagnóstico, não aceita, não conta pra ninguém, não conta para a escola. E é ruim quando não conta pra escola porque, se muita escola já não está preparada sabendo, imagina sem saber que a criança precisa de ajuda”, comenta a especialista.

Desafio 3) Nem sempre a escola faz a adaptação correta para acolher a criança e ajudar em seu desenvolvimento

Toda criança atípica tem direito a adaptação escolar para que consiga acompanhar pedagogicamente sua turma. Isso inclui não só casos de TDAH e Espectro Autista (TEA), como de Transtorno do Processamento Auditivo Central (TPAC), de transtornos de aprendizagem - dislexia, discalculia, disortografia, disgrafia - e de síndromes, como a de Down. Laudos de neuropediatras e neuropsicólogos costumam vir acompanhados de recomendações de, por exemplo, onde a criança deve se sentar na sala de aula para ter mais atenção, como deve ser sua prova, os direitos que ela tem a um professor leitor, a um gravador, a sair mais vezes para ir ao banheiro. Mas nem sempre a escola faz essa adaptação.

Por lei, essas crianças também têm direito a um profissional de apoio na sala de aula. Especialistas defendem que seja um acompanhante terapêutico (AT), que ajude a criar estratégias de aprendizagem. Quando disponibilizada, nem sempre, porém, essa AT é formada em Pedagogia, por exemplo, e especializada em transtornos.

“O papel da escola é ensinar da maneira que a criança aprende. Esse negócio de a professora colocar todo mundo na cadeira, passar uma fórmula e se o aluno não atingir a nota ele é que é errado não é a essência da escola“, afirma Ingrid. “O cérebro da criança atípica não funciona desse jeito. Então é essa criança que vai sempre para a coordenação, é essa que vão achar que é mal educada, não entendem a parte do transtorno. Vejo muitas escolas despreparadas e professores despreparadíssimos.”

Desafio 4) Nem sempre a escola trabalha a integração das crianças típicas e atípicas

Casos de bullying contra crianças atípicas infelizmente não são raros, assim como os casos de falta de acolhimento pela turma. “Tem crianças que não sabem o que é o transtorno e xingam os coleguinhas. Já ouvi algumas vezes: ‘Ah, cala boca, seu autista. A criança muitas vezes nem sabe do que está falando.” Para Ingrid, isso reflete outro erro comum no ambiente escolar, que é o de não explicar de forma simples a todas as crianças o que é um transtorno neurológico e não trabalhar a questão do acolhimento.

Desafio 5) Nem sempre escolas e famílias se entendem

De um lado, famílias de crianças atípicas reclamam que a escola do filho não está fornecendo a educação preconizada pela legislação. De outro, professores tentam lidar com diferentes diagnósticos numa mesma classe que normalmente já tem desafios e conflitos e veem uma supervalorização dos laudos, que passam a definir “quem a criança é”. Tudo isso muitas vezes sem formação adequada. Nesse embate, perdem mais as crianças atípicas, que ainda têm de enfrentam os rótulos trazidos pelo diagnóstico.

Desafio 6) Nem sempre a sociedade entende o diagnóstico

A alta no número de laudos tem levado a uma desconfiança sobre “excesso” de diagnósticos e falta de limites e de família. Mas, para Ingrid, “hoje as pessoas falam que tem muito porque antes não tinha nenhum”. “E por que antes não tinha nenhum? Porque há 40 ou 50 anos ou você tinha um caso muito grave e era chamado de retardado mental ou você tinha muitas dificuldades - hoje seria o autista leve ou TDAH -, mas conseguiu dentro das dificuldades ir tocando o barco e realizar as coisas na vida: casar, se formar. Pode ser criança que tinha algum transtorno, mas a mãe não foi buscar ajuda e, mesmo se buscasse, o médico também não ia ver. As pessoas falam por falta de conhecimento, vejo muito mais crianças que não têm diagnóstico do que excesso de diagnóstico.”

Desafio 7) Além de tudo isso, tem as telas...

O mundo digital - e seu monte de telas - impôs graus de complexidade nesse cenário já pra lá de desafiador. “A questão do transtorno de ansiedade está sendo agravada demais pelas telas”, resume Ingrid. “A criança precisa de uma carga constante de dopamina Quando a gente tinha 10 anos, as músicas tinham 3 minutos e meio, hoje têm um minuto e meio porque as crianças não ficam mais dançando a mesma coreografia, não cantam mais. Tudo tem de ser muito rápido.” Para complicar, alguns transtornos podem ter como comorbidade a ansiedade infantil.

O que os professores acham disso tudo?

“Quando saímos da licenciatura não estamos preparados nem para os alunos considerados típicos, quanto mais com atípicos. Aprende-se na marra!”, brinca a professora Rosangela Senger, que está há 33 anos na profissão e já teve sala com 23 alunos onde um tinha TEA, três TDAH e um com TOD (transtorno opositor desafiador). “Não há receita pronta que funcione para todos os alunos, pois mesmo tendo o mesmo diagnóstico, TDAH por exemplo, cada um tem seu jeito. Trabalho em um escola onde temos uma profissional que é psicóloga e pedagoga. Ela nos dá suporte, nos orienta dando dicas para tentar melhorar nossa conduta em relação aos alunos com NEE (necessidades educativas especiais). Mas a responsabilidade de ensinar é nossa.”

Para Rosangela, trabalhar em parceria com a família e os terapeutas é o melhor caminho, independentemente da necessidade em questão. “Não acredito que seja papel somente da escola oferecer a formação ao professor, mas este precisa buscar um aprofundamento para que seus alunos se desenvolvam da melhor forma. Na minha trajetória quando começamos a receber alunos com TEA, por exemplo, fui buscar especialização, independente da escola onde trabalho. Mas te digo: ultimamente, a falta de limite, interesse e respeito de alunos considerados típicos é a nossa maior luta diária.”

E o que pensam as mães?

Mãe de uma criança com TDAH, a publicitária Elaine Cristina Marques acha que as escolas deveriam fazer mais palestras sobre transtornos, chamar os pais para conversar, trazer especialistas para falar por exemplo sobre como detectar problemas no filho. “Para mim foi uma surpresa boa a escola, partiu da escola o alerta. E a gente foi super bem acolhido. A coordenadora nos procurou, falou do TDAH junto com a professora. A gente deu sorte porque a professora do segundo ano tinha formação em neuro e deu muitos insights pra gente. No começo eu achei que não fosse transtorno, pensei que eles estavam querendo encaixar a criança no padrão deles. Mas, quando vi meu filho fazendo caratê, percebi que tinha algo errado. Porque estava no meio de uma turma e ele não parava. Sentava, levantava, girava no chão. Fiquei pensando o quanto isso incomodava a ele mesmo.”

Elaine conta que na classe de seu filho tem conhecimento de ao menos quatro casos de TDAH e será necessária uma mudança no “olhar” dos professores. “É uma coisa nova. Antigamente se tratava todo mundo como lerdo, presta a atenção cabeção. Hoje está mudando, mas ainda tem muito a avançar, sabe? E depende muito de sorte, porque muitos colégios ainda são muito conteudistas. As escolas têm de focar no ser humano.” E, em sua opinião, não perder de vista também os adolescentes atípicos. “Minha impressão é de que, conforme as crianças vão crescendo, a paciência das escolas vai diminuindo. Com criança pequena acho que há mais acompanhamento - porque tem uma professora responsável - e muito mais paciência do que com adolescente, que já passa por uma fase tumultuada.”

O que é preciso fazer diante desses desafios?

Não se fala em “cura” para transtornos do neurodesenvolvimento, pois eles não são considerados doenças. Costuma-se recomendar, no entanto, terapias para reduzir impactos do transtorno na vida social, acadêmica e emocional. Como elas variam segundo o diagnóstico, ter um laudo correto é fundamental. O passo seguinte será avançar num plano de ação para a criança, a chamada adaptação, que além de apoio escolar costuma incluir monitoramento médico e psicológico e, eventualmente, remédios.

“O que eu recomendaria?, pergunta Ingrid. “Para as escolas: se prepararem e terem professores capacitados em transtornos neurológicos (sinais e sintomas) e em como fazer a adaptação”, responde. “Para famílias atípicas, não transformar o tema em tabu, conversar sempre com as crianças porque normalmente elas têm baixa autoestima pois se acham inferiores, sabem que as outras não têm as dificuldades que elas têm, então vale explicar que cada um tem suas questões. Para as famílias não atípicas, conversar com seus filhos porque isso é também formação de valores e de caráter. Lembrar que o outro é diferente, precisa de uma adaptação e que cada um tem suas necessidades. Tudo o que é conversado, explicado de forma prática, a criança entende. E, quando a criança entende, normalmente a criança abraça.”

Por Luciana Garbin/Estadão

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